Falta, Ausência

Voltei a atirar pedras no lago, aquele perto de casa.
Voltei a dobrar os lençóis da cama, logo cedo, ao acordar.
Voltei a ouvir Sinatra e a ler Simone de Beauvoir.
Voltei a acender cigarros, importados, que eu não fumo.
Voltei a ler a Bíblia, aquela parte toda sobre o fim.
Voltei a ficar triste ao ouvir a chuva cair no telhado.
Também voltei a ter esperanças e tornei a perdê-las.
Voltei a ler tuas cartas, e-mails, recados e tornei a queimá-los.
Voltei a sonhar com você e tornei a lhe esquecer.

Futuro

“Volver a los diecisiete después de vivir un siglo”

Mercedes Sosa

Por aquele tempo o futuro era só uma suspeita. Um frio na barriga, amarrado em milhares de memórias recentes de outros futuros instantâneos. Era o prazer da língua a passear pela superfície viscosa do alento proibido, ríspido, rígido, arqueado no corpo alheio, dela. O lamento triste da trilha sonora de algum filme antigo, latino, sobre desaparecidos políticos. A vontade de ter oito anos de idade outra vez. O som enlatado da oração do pastor a atravessar toda rua, no caminho do supermercado, cortando os céus, lançando versos da Bíblia a Deus e a todos aqueles que não pediram para ouvir. A promessa de um abrigo forte, capaz de parar raios, relâmpagos e bombas. Você, de volta, debulhada em sorrisos, perfumes, promessas e beijos… sonhos. Ontem sonhei com você.

Miragem

Miragem by MalluGreen

“O marasmo se avizinhava, trêmulo, rente à linha do horizonte. Era uma quase vertigem, uma miragem provocada pelo sol quente, o apocalipse dourado pós-explosão.”

foto by Malu Green

Mofo

Arrastava-se pelo asfalto
Perdido em assombros
Você costumava ser melhor do que isto
Tinha outras cartas nas mangas
Um truque novo a cada sexta
Vício de linguagem, tudo em suspense
A pele, curtida da vida, expõe a dor
Você construiu mentiras, sopros
Contaminava a todos com os seus beijos
Desproporcionais… evidência, aspas
Frases soltas, pequenos roubos, acertos
Ela tinha uns olhos envenenados
A raiva pode ser dor sincera
Quebrando o mundo ao redor
Você deveria ter tramado um jeito
Uma maneira qualquer,
Uma forma de me devolver a alegria
Feliz, a dois, a sós, à solta
Mas as alegrias entre tuas pernas,
Os delírios em segredo
A véspera do sono
O perfume vadio
Tudo, tudo… viraram pó,
pão bolorento, vinho-vinagre, azul.

liberté

Pessoas são estranhas. Nem sempre se convencem do pior. Pessoas, com o tempo, se conformam com o mundo, com tudo ao redor. Tornam-se mais do mesmo, comuns, como todo mundo, como tudo ao redor, ainda que tudo ao redor não seja vida, ainda que tudo ao redor não tenha vida. Fascínio, destilando em enganos, em favos, doce pecado, passear por teus lábios, línguas, é sempre um erro. Um que eu quis evitar, mas o mundo te engole antes que você saiba se defender. A gente se perde em veias, em vaidades, em feiras, em exibições, exposições, em nós mesmos, no muito que achamos que somos, ainda que sejamos um pouco qualquer, sem pressa, sem vida, com muitas aspirações, muitas vontades. Minha vontade agora, bem, você sabe… nunca sei por onde começar. Não gosto de começos também… o grande silêncio. Le grand silence. Os teus olhos cheios, a grande tempestade que se aproxima. Pedaços de pensamentos no papel, apenas isto. Fluxo. Pressa. Flecha. Você na minha cama. Tu es ma came. Bruni no fone de ouvidos.

“você fingindo ser doloroso”

Com olhos agudos, vasculhava tudo ao redor. O pé enfiado no acelerador, os vidros fechados até o topo. O nome dela guardado entre aspas. Sorteio. Aquela altura ela já sonhava com anjos e corações partidos.

monstros

Monstros patinam no teto do seu quarto
São como imensas sombras projetadas
na parede branca, indo das escadas
para o corredor que leva pra cozinha,
Mas o que assusta se esconde noutro canto.
Da varanda observa a noite pintada
É bem tarde, nem todos dormem
na cidade onde todos pensam em fuga.
Gira o dial do rádio em busca de rocks
Acende um cigarro e espanta a fumaça
Se livra do cheiro dos cigarros acesos
O pai a engoliria viva se acaso soubesse.
Quando infla a fumaça cortante
Sente suas feridas eriçarem,
Como que numa inflamação, latejante,
Talvez seja por conta disto que fuma
Pondera.
Debulha os chicletes, pensa na vida,
No amor dele que nunca vai ter
Quase pode senti-lo entre as pernas
novamente.
A menstruação já veio, lembra-se
ao perceber o incomodo do absorvente
Não sabe até onde morreria
Se acaso, o atraso tivesse sido outra coisa
Um filho dele, um pedaço do amor
Que nunca foi, uma prova pra ela
Uma prisão pra ele, se convence
Do melhor.
O pior está entre os dedos, a escorrer
Escorregando pelo corpo, indo pelo chão
A procura do ralo mais próximo.
A violência é só uma vítima
Destaca em letras garrafais na parede
do quarto em erupção: vestígios, cheiros
Visgos, vergões, vastidão até encontrar
Repara no espelho o corpo
O que assusta são as mudanças silenciosas
Que levam tempo, que levam tudo
E deixam pouco, como ele fez
Folheia Clarice antes de se deitar
Floreia a vida em verdes campos
Antes de apagar a luz
Se lembra que já cansou de descansar.

*recém-saído do forno; sem revisão. estou com sono para tanto, por isto, perdoem o meu português ruim… rs

Das coisas que chegam ao fim

o céu ainda estava lá
fosse julho, quem sabe
desamarrotou o terno antigo
limpou os sapatos gastos
se pôs pela rua:
jornais debaixo do braço,
broche na lapela,
o mesmo rosto nos reflexos,
nos vidros dos edifícios espelhados.
talvez fosse para um samba,
a gafieira do cafetina café.
ainda era cedo,
cedo do dia, talvez não da vida,
ao menos era o que achava.
“o amor é um desperdício,
uma faísca”
era em tudo o que conseguia pensar
quando a pólvora quente
saiu zunindo pelo vão da tarde.

“agora sofre”

Ouvindo Jards Macalé desde ontem. “Um álbum de fotografia para depois queimar” – é ao que se resume o amor. O som em surdina dos metais ficou centrifugando em minha mente junto com a ressaca. Me lembrou Taxi Driver. Rodando pelas ruas de Brasília, alto do álcool, errando as quadras da W3 Sul. Lerdo do sono, apreensivo quanto à polícia, pensando na vida, furando os sinais fechados, filosofando quanto ao amor; imaginando roteiros, construindo estórias; de certo modo, é tudo o que sobra depois de mais uma noite por aí. Gosto da noite, do cheiro da noite, do som de sax, esparso, viajando pela escuridão, arrastando papéis no vento. As lojas fechadas borrando o soslaio da retina. Tudo passa. Cena de cinema. Gosto de olhar dentro da noite, o rosto das pessoas, as possíveis histórias por trás dos olhares, por vezes, tontos. Gosto de olhar as garotas a se sacudirem ao som espacial pós-contemporâneo. Jackson estremece a noite, provoca frisson. É meio recorrente, mas me sinto cada vez mais velho, mais lento, mais reticente, mais cauteloso quanto ao novo. Há um erro terrível ao se estar rodeado de belas garotas: nunca sei por onde começar. Vontade de tá longe; enroscando entre as pernas macias da mulé cheirosa, tentando me equilibrar no vão da boca, saliva. Ela escreve no e-mail, quase chorando, que talvez esteja arrependida. Lá se foram quase dois anos desde a porta encerrada, com força, atrás de si, sem olhar pra trás. Talvez ele já nem goste mais de garotas, mas mesmo assim, ela ainda não sabe o quer da vida. Mas esta não é a minha estória. A minha é aquela outra. A do cara que foi embora, que saiu para comprar um maço de cigarros e foi visto no Japão. Gosto dos olhos e do jeito com que ela faz com a boca na hora de dançar. Vagueio em prosa, pra destilar versos em seu vestido. A poesia é só um jeito de impressionar as garotas, sempre foi. Eles acreditam que Deus estava ocupado com a criação de algum outro universo, gastando horas em frente o ábaco. Hoje vi teu nome na televisão. Tudo estava frio como um fade out de algum filme de Sofia. O disco chegou ao fim. Hora de ir pra casa. O celular calado do Beatles. Você me faria um bem danado, se acaso, me telefonasse agora. Tim Maia… “agora sofre”

Transa

Desencaixotei os vinis. Estava com vontade de ouvir London, London, deitado no sofá da sala com um vinho barato. Ainda lembro das tuas curvas do teu corpo. Jóia ainda tem o teu hálito que você derramava sobre mim, ofegante, impávida, enquanto transávamos no sofá da casa dos teus pais. Cigarros, vinhos e Caetano, depois a correria pra limpar a bagunça toda, antes que seu pai entrasse pela porta. Daí vinha o Transa, enquanto você contava tuas piadas sem sentido. You Don’t Know Me. Eu conhecia o teu corpo, ah como eu conhecia aquela tua pele branca cor de leite, borrada de sardas, conhecia os teus dedos que você passeava ávida por mim. Nunca me sentia só. O seu ar revolucionário provocando minhas fantasias, os seus clichês, incenso perfumando a casa, a saia hippie. Eu gostava daquele grande clichê que você era. Godard, Bertold Brecht, Chico, que você não trocava por ninguém, com quem devia ter os teus pequenos/grandes silenciosos, trancada em teu quarto. Chico nunca mais foi o mesmo pra mim… Eu quis assassiná-lo. Juro que quis. Não me pergunto por onde você andará, o que me interessava ficou lá atrás, naquelas tardes.

*um texto avulso, em prosa, como há muito eu não fazia, desde da época do gamella, acho. Acho, também, que perdi a mão… rs